quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

A mudança

Depois dos crimes, o arrependimento e a mudança; mas, quem acredita nelas?
06/12/2007 - 01:07

* Eles mataram, roubaram, caíram em desgraça, chegaram ao fundo do poço, mas foram resgatados por alguma "força divina"
* O que a psicologia tem a dizer dessas pessoas que mudaram em pouco tempo a própria personalidade?
* Nas principais penitenciárias do Acre, hoje, existe uma "colônia" de detentos convertidos a qualquer coisa melhor que o crime
Reportagem: Evandro Cordeiro
Fotografia: Odair Leal e Francisco Chagas
A cabeça do major da Polícia Militar, Ferdinando Holanda, vivia sempre fervendo, quando ele estava de serviço, executando alguma operação, ou mesmo na singeleza do barzinho onde nos finais de tarde o oficial não dispensava uma bebida. Era uma máquina de resolver problemas da forma mais violenta para a qual a questão descambasse e disso ele se gabava à época. Matou, encheu de pancadas algumas de suas vítimas, insubordinou-se no quartel e fora do âmbito de trabalho, perverteu-se nas concupiscências da carne. Tanto que o primeiro casamento acabou. Hoje, não esconde a verdade: vivia na prostituição. Na atualidade, um encontro com o ainda major Holanda é uma amabilidade só. Nem a voz é a mesma. O olhar deixou de ser inconstante e o modo de resolver as coisas é baseado na prudência. Ele mudou inexplicavelmente, pelo menos aos olhos dos homens comuns. Até a ciência tem quatro milênios, desde Platão, vem tentando explicar essas mutações da personalidade humana. Os psicólogos atuais chamam isso de transtorno de personalidade. Para o próprio major, que achou na mudança a certeza da longevidade na terra e de uma vida após a morte, a explicação é apenas uma: "Foi Deus quem refez minha vida", fala com a propriedade de quem é cátedra na vida material, uma vez que tem formação superior com diversas especializações.
O exemplo do major Ferdinando Holanda é apenas um entre muitos. Nas duas penitenciárias da capital, a Francisco D’Oliveira Conde e a Antonio Amaro Alves, há uma verdadeira "colônia" de homens convertidos, quer seja ao evangelho ou a qualquer causa que amenize a dor do confinamento. A visão mais ampla dessa mudança é muito medieval ainda. Muitas pessoas questionadas têm na ponta da língua: eles se escondem atrás de uma Bíblia para tentar se limpar com a sociedade. "Eu ouvi muito isso, até as pessoas entenderem que hoje sou um homem totalmente convertido pelo amor de Cristo", diz Raimundo Nonato do Nascimento, 37 anos, 15 dos quais vividos na cadeia. Ele é ninguém menos que a simbologia do crime nos anos 90, reconhecido pela alcunha de "Rambo 157".
Para essas pessoas de passado horrendo, se livrar de suas pechas não tem sido tarefa fácil. O ser humano tem a capacidade incrível de julgar o próximo, diz o pastor quadrangular Edvaldo Santana, especializado em ministrar terapias a ex-detentos, ex-prostitutas e ex-homossexuais. "Rambo 157", por exemplo, diz atualmente que foi muito mais fácil convencer a Deus de que sua vida é outra do que incutir isso na cabeça da sociedade. Em muitas ocasiões ele percebe que ainda é temido, como se usasse o subterfúgio da violência, como fazia há uma década e meia para ter o direito de ser respeitado. Mas será que "Rambo 157", major Holanda, sargento Braga, outra máquina de perversidade da Polícia Militar na época do esquadrão da morte mudaram? Para a psicologia, é possível que sim e que não. Essa ciência tem várias vertentes explicativas. Através do chamado transtorno de personalidade, é provável que eles tenham alcançado estágios importantes de mudanças, mas é admissível, também, que alguns tenham apenas se escondido atrás de algo para se livrar da masmorra e do preconceito da sociedade. Não é à toa, por exemplo, que dos nove convertidos durante um culto realizado pelo missionário Josias Pinheiro de Paula, na prisão Papuda, em Brasília, apenas cinco ou seis permanecem na fé, como dizem os cristãos. Mesmo no sofrimento da mais temível fórmula de dissociamento, as cadeias de segurança máxima, uma parcela dessas pessoas fraquejaram. Naquele grupo havia 18 presos do esquadrão da morte, pegos pela malha da CPI do Narcotráfico. Além de privados da liberdade, eles estavam mais ainda psicologicamente abatidos pela distância dos familiares e dos cabos de seus revólveres, através dos quais resolviam suas questões, em qualquer esquina de rua em Rio Branco.
A direção do sistema penitenciário do Acre quer distância de trocar informação com a sociedade, alegando uma tal segurança de estado, mas há notícias extra-oficiais, passadas por grupos da pastoral da Igreja Católica e de evangélicos que freqüentam a cadeia para levar a palavra de Deus aos presos, de que é crescente a conversão por lá. "Num culto apenas, 11 detentos se ajoelharam aos pés do Senhor", diz o presbitério da igreja Assembléia de Deus, Osmar Alves. A freira Ester Ostrowsky, a superiora da Diocese de Rio Branco para as pastorais, garante que uma gama de ex-presidiários mudou de vida. "Nossa pastoral carcerária, coordenada pela irmã Nazaré Menezes, tem feito coisas boas, porque nós acreditamos na mudança das pessoas. E é disso que elas precisam, que a gente acredite nelas", diz a irmã, cuja maior parte dos 47 anos episcopais tem sido dedicada às pastorais.
O testemunho de algumas dessas pessoas que resolveram mudar de vida pode não ser determinante na criação de um novo caráter para quem um dia desviou a conduta, mas derruba por terra ditados que não passam de cultura do almanaque capivarol, mas que acabam popularizadas, como aquele segundo o qual "pau que nasce torto, morre torto". A lição que o grupo do esquadrão da morte levou da Justiça, numa ação conjunta de governo e sociedade, mudou ao menos o estilo de vida no Acre e, de quebra, transformou corações de pedra em poços de bondade. Essa questão nem precisa da explicação da ciência. Isso cabe, ainda, a casos isolados de maus elementos que foram parar atrás das grades e, no fundo do poço, resolveram dar uma chance à própria alma.
RAMBO 157
O bandido mais temido de Rio Branco da
década passada virou exemplo na igreja
DELE
"Um dia vou pessoalmente pedir
perdão ao Romildo Magalhães"
As polícias Militar e Civil do Acre nunca foram de levar desaforo para casa. Em meados dos anos 80 um dos bandos de criminosos mais organizados que apareceram no Estado, comandados por um sujeito de aparência estranha tal qual o apelido, "Marrosa", não durou cinco anos desafiando a lei, até que uma operação liderada pelo delegado Enoque Pessoa pôs fim à quadrilha à bala, num morro situado na ladeira do Bola Preta, que por muitos anos ostentou o nome do bandido. Há outros exemplos bem mais modernos de precisão da polícia local, que passou a desvendar crimes sem os abusos do passado. Mas nesse ínterim, um bandido solitário resolveu desafiá-la. Era início dos anos 90 quando surgiu um lendário assaltante na parte alta do bairro Sobral que, pela violência com que fazia seus assaltos e a perspicácia com a qual driblava os homens da lei, foi logo apelidado de "Rambo 157", a junção perfeita das duas qualificações.
O nome de batismo de "Rambo 157" é Raimundo Nonato do Nascimento, hoje com 37 anos. Na época um garotão ainda, conseguiu, nem ele sabe como, dominar o tráfico numa região da cidade onde anos antes era domínio do grupo de "Marrosa" e onde ainda havia muitas células sobreviventes do bando. Tanto que nem soube tirar proveito, conforme conta atualmente, do poder que conseguiu alcançar. "Me danei a fazer assaltos, sem necessidade", afirma. Por causa dos assaltos violentos, sempre à mão armada, "157" virou alvo principal da Justiça e da Polícia. "Não fui morto em várias ocasiões, porque Deus tinha um plano na minha vida", garante. Para ser enjaulado, precisou ser alvejado por uma operação da qual participaram, além da Polícia Civil, a Militar e alguns agentes federais.
Mas entre seus atos mais conhecidos figura o assalto em que comandou ao Haras Cinco Irmãos, uma fazenda colossal localizada às margens da estrada Transacreana, construída como uma espécie de troféu pelo seu dono, Romildo Magalhães, porque ali pretendia curtir a aposentadoria que viria após a mais brilhante carreira política da época – ao menos para quem saiu de vereador no município de Feijó para galgar o posto de governador. O Haras foi o fim da linha para o então bandido "157". Um de seus comparsas, Hélio da Silva Lima, 23 anos, conhecido como "Pingüím", alvejou e matou Romildo Magalhães da Silva Júnior, o antepenúltimo da prole de Magalhães. Romildo conseguiu mobilizar todo o aparato policial para prender o grupo, o que acabou acontecendo dois dias depois. "Rambo" e seus acólitos foram parar na penal. Menos de um ano depois, "Pingüím" teve trágico fim, depois de cair na cilada de uma fuga até hoje não muito bem explicada. "Rambo" fugiu, voltou a ser preso um ano depois, tentou outra evasão, foi baleado a fuzil, por pouco não perde a perna esquerda e volta para detrás das grades, tornando-se o detento mais vigiado. O tino de liderança ele havia levado também para o presídio, onde era temido do primeiro ao último pavilhão.
Mas essa longa história, Raimundo Nonato, como gosta de ser chamado na atualidade, quer enterrar numa cova funda do passado. Ele conta que esse capítulo de sua vida terminou numa noite fria de setembro de 1998. Tocado por uma mensagem bíblica deixada no dia anterior por um missionário chamado João Gabriel, ele passara a noite em claro, orando e pedindo a Deus que o perdoasse pelos crimes. "Não tenho dúvida que Deus me perdoou. As pessoas contra as quais cometi crimes, também me perdoaram. Ainda vou pedir perdão ao hoje meu irmãozinho na fé, Romildo Magalhães", professa seu novo caráter. "Rambo 157" deixou a cadeia há um ano, mas continua trabalhando na penitenciária, onde virou inspetor da fábrica de bolas, um projeto patrocinado pelo Ministério dos Esportes. Com o salário de R$ 550,00, assegura que vive muito mais feliz e tranqüilo do que quando faturava dez vezes mais em apenas um assalto. Testemunha em favor do "novo homem" é o que não falta. Obreiro da igreja Assembléia de Deus no bairro satélite Custódio Freire, onde "157" freqüenta, o presbítero Osmar Alves Cordeiro, de 62 anos, dá o aval à nova personalidade de Raimundo Nonato: "Virou um homem de Deus, dedicado às coisas de Deus".

Psicologia chama essa mudança
de transtorno da personalidade
Consultado, o psicólogo Sérgio Ricardo Alves de Oliveira fez o usual da profissão. Explicou que essas mudanças são distúrbios graves da personalidade e das tendências comportamentais do indivíduo, não diretamente imputáveis a uma doença, lesão ou outra afecção cerebral ou a um outro transtorno psiquiátrico. Estes distúrbios compreendem habitualmente vários elementos da personalidade, acompanham-se em geral de angústia pessoal e desorganização social; aparecem habitualmente durante a infância ou a adolescência e persistem de modo duradouro na idade adulta.
Paranóica
Transtorno da personalidade caracterizado por uma sensibilidade excessiva face às contrariedades, recusa de perdoar os insultos, caráter desconfiado, tendência a distorcer os fatos interpretando as ações imparciais ou amigáveis dos outros como hostis ou de desprezo; suspeitas recidivantes, injustificadas, a respeito da fidelidade sexual do esposo ou do parceiro sexual; e um sentimento combativo e obstinado de seus próprios direitos. Pode existir uma superavaliação de sua auto-importância, havendo freqüentemente auto-referência excessiva.
No caso do policial, há uma associação à depressão, o primeiro estágio quando ele chega na cadeia. Depois vem a reflexão, quando eles passam a ler a Bíblia, e onde acham um ponto de apoio, explica o psicólogo. Esse processo é chamado de deslocamento. "Você passa a substituir o que fazia por algo novo. Os pensamentos, as atitudes são deslocadas para outro processo", diz. Mas Sérgio Ricardo não descarta a importância do evangelho no processo de ressocialização. "Isso é um canal de ligação deles com o mundo exterior", finalizou.

Nenhum comentário:

Bate Papo - Por um Trânsito Seguro